05 de março de 2018

Para você que tem cheiro de chuva

Crônicas

Antes de você chegar, minha lembrança mais gostosa da chuva era a de um domingo à tarde, lá na minha adolescência, quando eu havia saído para comprar pão e, na curva da esquina, senti uma poça molhar meus pés e um ventinho gelado abraçar minha alma.

Por anos, essa foi a minha maior memória de serenidade e paz. Era nela que eu me fortalecia em cada tempestade, pois sabia que mesmo seguindo com os pés – ou os olhos – molhados, algo me abraçaria em outra esquina qualquer.

Tantos anos depois, num domingo que jamais haverá de ser qualquer, eis que você me abraça a alma não numa esquina, mas diante de uma janela, pedindo para deixá-la aberta e sentir o cheiro da chuva lá fora. Um cheiro que, desde então, não sai de mim.

chuva - cheiro de chuva

É que, quando chove, eu me lembro do seu brilho no olhar e corro para abrir qualquer janela e contemplar o inesperado. O que requer abrigo e paciência, o que nutre, fortalece e faz nascer flor.

É que, quando chove, sinto o cheiro da sua pele transformando o vento frio em respiração quente, que protege e extasia como o barulho compassado de  cada pingo d’agua no chão.

É que, quando chove, eu silencio para ouvir o mundo lá fora e, mesmo diante de uma buzina ou outra, percebo que você estava certo ao dizer que não se pode controlar tudo na vida. O tempo, de fato – e de Chico -, é da delicadeza.

E é justamente com delicadeza que, quando chove, observo os nossos passos largos e tranquilos. Tão sofridos, mas tão seguros, dispostos a pisarem em quantas poças forem para se manterem firmes, numa caminhada sublime que não deixa de pertencer a nós dois.

É que, quando chove, eu sinto a paz de que nada foi em vão e durmo com a janela aberta porque sinto que nunca estarei só, mesmo que pense estar. É que , quando chove, eu me lembro: fecho os olhos e rego a vida.

Jéssica Vieira
Jéssica Vieira
31 de dezembro de 2017

Não é para 2018, é para a vida

Crônicas

Enquanto eu tentava escrever uma lista de metas para 2018, alguns fatos importantes da minha caminhada surgiam como um filme e, entre lágrimas e sorrisos,  foi o maior aprendizado de 2017 que me fez largar todas as folhas sem sequer olhar para trás: “a gente não tem controle de nada nesta vida”.

Para quem cresceu aprendendo a controlar tudo à sua volta por conta de uma deficiência visual e ainda teve a brilhante ideia de nascer com Sol em Touro, a lição não tem sido das mais fáceis, mas, de certa forma, por mais dolorosa que seja, ainda sinto nela a melhor parte de estar viva. Tudo, absolutamente tudo, pode acontecer. Estejamos prontos ou não. ️

É óbvio que ter em mente inúmeros planos (eu tenho vários!) e batalhar de forma honesta para conquistar cada um deles é fantástico, mas compreender que o trajeto para alcançá-los é bem mais longo que a distância entre as linhas que os dividem numa página é primordial para ter a real noção da importância de cada um deles.

metas para 2018

Entre aquela viagem maravilhosa sonhada há anos e os livros que se pretendia ler, há perdas, imprevistos,  desapontamentos, mudanças nas necessidades, medos e angústias. Para alguns, apertam os passos. Para outros, paralisam.

Entre aquela promessa de fazer mais exercícios e de visitar os amigos com mais frequência, há a preguiça, a incompatibilidade de horários, uma briga entre um casal apaixonado ou a final de um campeonato importantíssimo. Para alguns, desculpas esfarrapadas. Para outros, motivos sérios de compreensão.

Entre as juras de amor eterno e o compromisso em deixar aquele vício de lado, há a inconsequência, a recaída, o arrependimento e a força de vontade. Para alguns, dá trabalho. Para outros, motivação.

Entre tantas laudas, entre tantas linhas, entre uma meta e outra, já dizia Lenine: “a vida não pára“.  Então, passageiros de 2018, só nos resta seguir. Não para um novo ano, para um novo calendário ou um novo ciclo, mas para todo o sempre que ainda nos resta.

E para o que ainda nos resta  tenhamos como meta caminharmos de cabeça erguida, respeitando os obstáculos, os tropeços , os dias ensolarados e as tempestades. Tenhamos como meta o melhor que somos, honrando nossas palavras e respeitando as escolhas alheias, ainda que isso implique soltarmos as mãos de quem amamos. Tenhamos como meta os encontros inesperados, as descobertas de novos caminhos, os saltos no escuro, a coragem para voltar a uma estrada  antiga, o mapa sem roteiro.

Não é para 2018, é para a vida: a gente não tem controle sobre ela. O “check” acontece nas chegadas e partidas.

Feliz Ano Novo, gente!

Jéssica Vieira
Jéssica Vieira
14 de agosto de 2017

O amor simplesmente transparece

Crônicas

Eu a vi chorando ao entrar no elevador. Um choro tranquilo, sereno, daqueles nos quais, por inocência, a gente acha que se esconde, mas, na verdade, transparece. E, pelo visto, cada lágrima que ela derramava ali transparecia amor.

Era amor quando ela tremeu os dedos ao apertar o botão do 3º andar. Era amor quando ela olhou ao redor e deu um sorrisinho de canto, como quem pede desculpas a si mesma por não ter ido além. Era amor quando ela tentou enxugar a lágrima antes que eu a visse escorrer pelo seu rosto. Era amor quando ela suspirou e, sem olhar para trás, saiu em silêncio.

Em poucos segundos, ela me mostrou mais sobre o amor do que tudo o que me disseram a vida inteira: o amor simplesmente transparece.

o amor simplesmente transparece - jessica vieira

Arte LINDA da @marquestalita <3

Transparece no choro contido pelo medo do que está por vir. Transparece no sorriso largo por saber – e sentir – que tem a melhor companhia do mundo. Transparece nas lembranças do passado e na vontade de estar junto no futuro. Transparece no abraço apertado, no beijo ardente, nas decisões de última hora e nas que marcam uma vida inteira.

Não tem jeito, o amor é mesmo assim. Por mais que a gente esconda, ele simplesmente transparece.

E que sorte a minha ter visto tanta transparência naquele elevador. Hoje, subo e desço andares com a impressão de que o amor pode estar logo ali, transparecendo a alma.

Jéssica Vieira
Jéssica Vieira